quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Anumerismo

            ( "Os demagogos aproveitam-se do anumerismo generalizado")


MILHÕES E BILHÕES: É TUDO A MESMA COISA

O professor fala sobre o universo e vaticina sobre o desaparecimento do sol. Assustado, um aluno o interrompe:
- Professor, poderia repetir: dentro de quantos anos mesmo o senhor disse que o sol irá desaparecer?
- Eu disse “em bilhões de anos”.
- Ah, que susto! Eu tinha entendido o senhor dizer “em milhões de anos”.


Chama-se “anumerismo” a incapacidade de compreender o significado dos números. Não seria correto dizer que o “anumerismo” está para os “números” assim como o “analfabetismo” está para as “palavras”. É mais que isto. Saber ler ou escrever números – e até fazer operações com eles - não garante que saibamos o que eles significam, assim como conhecer cores não nos assegura a compreensão de uma pintura. Seria mais adequado dizer que o “anumerismo” está para os “números” assim como a “semântica” está para as palavras. Ainda não é comparação perfeita mas me parece a melhor.
Por que esta incompreensão é um problema.
Porque o “anumerismo” é uma enorme barreira para a comunicação. Ele anula a condição do receptor de captar e de processar certas mensagens. Por exemplo, como é possível comunicar um plano de governo ou empresarial ou mesmo doméstico para quem diz: “Ah, esse negócio de números não é o meu forte”. O(a) leitor(a) já deve ter ouvido confissão semelhante de homens públicos, ou na empresa, ou em casa. Às vezes, o reconhecimento da incapacidade não é explícito. Ele se demonstra por atitudes, por decisões, por iniciativas. Não faz muito tempo, a título de indenização, uma juíza condenou o Banco da Amazônia a pagar 81 bilhões de dólares a uma pequena empresa privada. Este valor, em torno de 10% do PIB nacional, daria para comprar vinte e cinco empresas do porte da Vale do Rio Doce. Indagada sobre o valor da sentença, a juíza declarou: “Eu também achei que era muito dinheiro. Mas tenho que me ater aos autos. Eu não sou técnica”. Durante a chamada CPI dos bancos, o país assistiu, pela televisão, senadores constrangidos se atrapalhando com grandezas, percentuais e os malditos zeros à direita.
O estrago causado pelo “anumerismo” é diferente daquele que resulta do não-entendimento do significado de uma obra de arte. Esta última pode, quando muito, implicar num problema para artistas, marchands, enfim, para quem vive nesse mercado. Poder-se-ia até aceitar que o grande prejudicado desta incapacidade é o próprio leigo. Afinal, ele deixa de ter acesso a um prazer muito especial: o estético. Entretanto, o estrago que você faz na sociedade – e em outros segmentos menores - por não saber ler e compreender um trabalho artístico é infinitamente menor do que não saber ler e compreender alguns conceitos elementares que envolvam números. Como no exemplo da meretíssima e de suas excelências, os nobres senadores.
Para quem o “anumerismo” é problema.
Para tudo e para todos.
A começar, para os governos. Quaisquer. Em qualquer lugar. Quantas pessoas são capazes de entender a diferença entre gastar milhões ou bilhões de dólares num projeto de governo? Esta incapacidade é um problema universal mas, no Brasil, por várias razões e entre elas o longo período vivido de inflação altíssima, assumiu proporções maiores. A desordem dos preços relativos não permitia que as pessoas construíssem referências. A atitude bem brasileira de comprar a prazo pagando juros extorsivos porque “o que eu ganho por mês dá para pagar a prestação” é uma seqüela do “anumerismo” e é um problema para o governo, para as empresas e, principalmente para os próprios devedores. A nostalgia dos tempos da inflação exemplificada no queixume “ pelo menos a gente tinha aumento todo mês” é outra derivada. Em suma, fica difícil para os governos justificarem medidas importantes para a sociedade, tais como, cortes de gastos e aumento de impostos. Por outro lado, os projetos mirabolantes para acabar com essa ou aquela mazela social encontram fácil aceitação. Os demagogos se aproveitam do “anumerismo” generalizado.
Interessante é que, enquanto a erradicação do analfabetismo tem sido um objetivo de todos os governos em todo mundo, o “anumerismo”, possivelmente mais grave que o primeiro, não merece nenhuma atenção das autoridades, nem de nenhuma ONG. Não tem ainda status de “chaga social” apesar de já ter sido a causa de decisões erradas tomadas por homens públicos, muitas das quais resultaram em golpes de estado, revoluções, guerras, tudo com um enorme custo para a humanidade.
É um problemaço para as empresas. Os exemplos não ficam apenas na questão da inadimplência acima mencionada. A atividade de marketing numa população de consumidores onde grassa o “anumerismo” é de alto risco. Nesses ambientes, “convencer” e “enganar” estão muito próximos. No outro lado da casa, profissionais de Relações Públicas das empresas falam com interlocutores – jornalistas, congressistas, formadores de opinião, autoridades – que também fazem confusão entre milhões e bilhões. Mas a pior notícia vem de dentro de casa: os próprios empregados sofrem de “anumerismo”. Mesmo em grandes empresas, mesmo entre os altos salários, no topo, há quem considere que “números” não é seu forte e deixe essas questões áridas e maçantes exclusivamente para os financeiros da empresa. O problema já começa nos processos de admissão, quando se atribui mais valor aos conhecimentos de inglês e espanhol do que a habilidade de entender os números. Com isto, em tempos de vacas magras, quando chega a hora de apertar o cinto, o esforço da comunicação interna não chega a lugar nenhum.
O “anumerismo” não tem preferência de sexo, nível educacional, cultural ou de renda. Um sertanejo analfabeto pode saber lidar melhor com números que um herdeiro da tradicional burguesia paulista formado na USP e que fala cinco idiomas. Uma empregada doméstica pode saber administrar melhor o seu ordenado que a sua patroa ou patrão seu orçamento doméstico. Mas a má notícia é que o mal ataca a grande maioria das pessoas.
Quê fazer?
Como sempre e como tudo, o ponto de partida é ter consciência do problema. Sobretudo os comunicadores. Saber que esta deficiência é um dado de realidade e levar isto em consideração nos seus programas. Grandes campanhas morreram na praia porque os estrategistas esquecerem este detalhe: as pessoas não sabem compreender números. O trabalho deve começar dentro de casa, um universo onde se tem mais controle. Educar amplamente a população: de cabo a rabo. Evitar que a questão dos números se departamentalize, vire “problema do departamento financeiro”. Considerar a habilidade como condição de progresso e de ingresso na empresa. Para a sociedade, infelizmente, não existe solução de curto prazo. O que poderia ser feito – para benefício das próximas gerações - é incluir a velha matemática e noções de contabilidade em toda a cadeia escolar, do maternal à faculdade, sobretudo nas chamadas Ciências Humanas. Estabelecer o “numerismo” como pré-requisito em todos os concursos públicos.
Acredite: se a maioria das pessoas soubesse entender o significado dos números, o mundo seria melhor. Pelo menos, para os comunicadores.
[Artigo publicado na revista COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL, da Aberj, número 41, em dezembro de 2001]

Roberto de Castro Neves, www.imagemempresarial.com


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